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Artigo: as lições que o marketing insiste em esquecer
Confrontado com o ceticismo de um jornalista, Roberto Goizueta, icônico CEO da
Coca-Cola por 17 anos, respondeu “eu não poderia estar mais seguro”. O ano era
1985. Há uma década, seu maior concorrente havia iniciado o “desafio Pepsi”, uma
campanha de marketing extremamente eficiente, em que pessoas faziam um teste
cego das duas bebidas e, reiteradas vezes, apontavam preferência por Pepsi.
A própria Coca-Cola havia replicado o teste, registrando mais de 10% de preferência
em sentido à Pepsi. A situação não parecia deixar opções, senão a mais radical:
mudar a fórmula secreta mais famosa da história da indústria. A primeira mudança
em 99 anos.
Seguro da inevitabilidade dessa conjuntura e amparado pela opinião das 200.000
pessoas que participaram do maior e mais cuidadoso estudo de marketing até
então, em 23 de abril daquele ano, a Coca-Cola contra-atacava com a New Coke,
uma fórmula mais doce e leve do refrigerante, acompanhada por pequenos ajustes
no layout da lata, para adaptá-la ao estilo da moçada que compunha a base de
entusiastas da Pepsi.
O resto da história é de conhecimento geral. A New Coke foi um fiasco absoluto,
levando ao retorno triunfante da fórmula original 79 dias depois, inicialmente como
Coca Clássica, um produto paralelo, até o sepultamento definitivo da New Coke, em
2002.
Uma das coisas que essa história mostra é que avaliações de preferência são
profundamente enganadoras. Malcom Gladwell, autor do delicioso Blink, tem uma
hipótese para este caso: a experiência de alguns goles difere bastante da
experiência de uma lata inteira. Bebidas mais doces são mais marcantes no começo,
ocasião em que são preferidas; porém, elas vão perdendo apelo ao longo do tempo,
uma vez que se tornam enjoativas.
Em choque após replicar os resultados da concorrente, a equipe da Coca-Cola não
conseguiu perceber e levar isso à público de maneira convincente, o que ocasionou
um dos maiores prejuízos financeiros e de imagem da história do capitalismo
moderno.
Uma coisa que pouca gente sabe é que o Desafio Pepsi não é apenas um marco para
o marketing, como o é também para as neurociências, que a partir da virada do
milênio começaram a flertar intensamente com o marketing. Foi uma replicação do
Desafio Pepsi, enquanto os sujeitos tinham seus cérebros escaneados em uma
ressonância magnética, em 2004, o responsável pela popularização do chamado
neuromarkerting, área em que a atividade cerebral é utilizada para perscrutar
desejos e preferências.
Ali teve início uma verdadeira corrida em busca da melhor maneira de se revelar os
segredos mais mundanos da alma humana, secundado por um outro fenômeno, o
surgimento de uma legião de comunicadores, especializados em botões de consumo
escondidos em zonas reptilianas do cérebro humano e outras noções extravagantes,
do ponto de vista da ciência. Rastreamento ocular, ondas cerebrais, ressonância
magnética, espectroscopia infravermelha, variabilidade cardíaca, hormônios, tudo
entrou.
Quinze anos depois, o que se observa é que as ferramentas das neurociências
encontraram um espaço no universo da pesquisa de marketing, onde aprofundaram
tendências e instauram novas. O aprofundamento é sobretudo do rigor, essencial
para a coleta de dados fisiológicos, enquanto a principal ideia nova é a de que gostar
e preferir são estados cerebrais, que podem ser sistematicamente definidos.
O que pouca gente parece ter percebido é que a maneira como estas verdades
foram incorporadas criou uma espécie de generalização das premissas do Desafio
Pepsi, da tendência a se tomar a consistência dos dados como evidência de
consistência da hipótese subjacente aos mesmos.
Consideremos na prática. Um comercial televisivo tende a ser uma peça curta,
voltada à valorização de uma marca ou produto. A maneira mais simples de se fazer
isso é expondo as qualidades mais atraentes, durante toda a exibição. Assim, este
tipo de narrativa tende a colocar os expectadores em uma postura contemplativa e
a gerar um de dois efeitos: experiência positiva ou indiferença.
Seguindo essa lógica, para comparar diferentes versões do mesmo comercial, ou
ainda comparar comerciais de diferentes produtos, tudo o que preciso é saber qual
produz a experiência mental mais positiva, ao longo de sua exibição – um raciocínio
irretocável a ponto de fundamentar um mercado, que hoje em dia transcende o
marketing e envolve a indústria do audiovisual como um todo.
O grande problema é que nem todo roteiro é contemplativo ou procura despertar
um contínuo de sentimentos positivos. Grande parte deles explora o humor, que
depende de momentos menos efusivos para abrir espaço para o riso, bem como a
culpa, o mistério, o senso de absurdo e muitos outros.
De todos, nenhum ilustra melhor essa questão do que a dupla terror/suspense e sua
versão publicitária atenuada, a narrativa de susto. A qualidade de um filme de terror
é determinada pela capacidade de despertar sensações que, fora deste contexto,
são consideradas negativas. Se o caso fosse o de usar alguma dessas metodologias
de mercado, a recomendação seria apontar as conclusões contra um espelho.
A boa notícia é que a miopia que paira sobre este assunto está sendo tratada.
Acabou de entrar no prelo da prestigiosa revista Frontiers in Human Neuroscience,
um artigo que traz o primeiro conjunto de experimentos voltados à diferenciação da
natureza interna da preferência por filmes contemplativos, de aventuras e
comédias.
O artigo sintetiza a pesquisa de doutorado de Henrique Teruo Akiba, meu ex-aluno,
e possui tudo para colocar o Brasil em um lugar de destaque nesta área, até porque
disponibiliza livremente um tipo de conhecimento que costuma ser patenteado.
É interessante notar como as narrativas engraçadas têm uma dinâmica neurológica
a meio caminho entre as de susto, em que o timing é contado em milissegundos, e
as contemplativas, em que os elementos cenográficos determinam a experiência, ou
como a aventura é um gênero particularmente difícil, que precisa trabalhar com o
fato de que a atividade neurológica que faz as pessoas se prenderem às cenas mais
eletrizantes, também as torna incapazes de prestar atenção, quando não intercalada
por períodos de descanso. Há também o fato de que as preferências variam ao
longo do dia, e se relacionam à personalidade.
Muita gente tem perguntado se essa nova linha de estudos vai elevar a qualidade de
nossas produções audiovisuais ou, ao menos, de nossos comerciais televisivos. Difícil
saber. Se servir de lembrete de que dados e tecnologias são apenas meios para
investigar aquilo que só uma visão nuançada da arte e da técnica pode revelar, sim.
Porém, se servir para reafirmar, numa base ampliada, a ideia de que a preferência
tem uma assinatura neurológica independente da natureza daquilo que se coloca
sob comparação, aí certamente não. Não apenas isso está errado, como a beleza da
arte e o interesse da técnica estão em sua capacidade de questionar entendimentos
e nos oferecer o inclassificável.
* Álvaro Machado Dias é pós-doutor e professor livre-docente da Universidade
Federal de São Paulo.
Fonte: Época Negócios